Caros amigos, hoje é dia de comentar um pouco de medicina. Mas antes quero avisar que estarei fora nos próximos 15 a 20 dias, por isso não vou alimentar o blog. Recebam um abração, até a próxima.
TÉCNICA E HUMANIDADE
Nos 3 últimos anos do curso de medicina e por mais algum tempo depois de formado estagiei em um hospital do governo em Salvador. Ali dava plantões regulares, aprendendo com os mais experientes aquilo que os livros insinuam, mas não dão: experiência. Naquela época havia um médico, já um senhor, muito respeitado (ainda o é, por merecimento) cujo nome não citarei apenas porque não lhe pedi permissão para contar esta passagem. Quando ele era meu chefe da equipe, o que acontecia uma a duas vezes por semana, nos momentos mais calmos me pedia que lhe contasse algo da história ou da mitologia, principalmente do povo grego. Desde muito jovem sou apaixonado por história e por mitos, assim que, aqueles momentos eram para mim deliciosos. O famoso médico me contou que havia vindo do interior e que em sua vida dedicara-se exclusivamente a sua formação técnica de modo que descurara do humanismo. Devo dizer que ele era e é uma pessoa muito humana. Desconhecer as tradições e a literatura dos antigos não lhe feriam o senso de valor da vida humana, tampouco lhe reduzia o tratamento carinhoso para com os pacientes. Mas, sentia falta. Dizia. Contava-me que sentia prazer em conversar e perguntar das aventuras, correrias e pensamentos das gentes do passado. Queria conhecer. Vejo-o até hoje como o protótipo do bom profissional.
As profissões em geral carecem de um permanente cuidado na formação. Hoje está se tornando lugar comum dizer formação continuada, mas, comum ou não, incomum é sua realização, porém esta realização é uma necessidade de toda profissão. O cuidado em aprender o que de novo traz o universo das pesquisas é essencial. Porém, com demasiada freqüência, tal formação importa-se apenas com a técnica crua do ofício. O que é uma pena, pois que, o profissional é gente, como tal carece de integridade. Sim, nós, seres humanos, queremos ser íntegros, ou seja, responder ao mundo, ou viver no mundo conforme a totalidade de nosso ser. Dentro do possível. O que nos dá o possível são as nossas capacidades de sentir, ver, refletir, degustar etc. Quando vivemos apenas a técnica do nosso ofício e deixamos de lado a vida social, afetiva, intelectual não profissional, do lazer, da arte entre outros aspectos, somos candidatos fáceis à infelicidade, mesmo surda e imperceptível, de não ser inteiro. Podemos não nos dar conta disso claramente, mas a vida começa a ser apenas repetição, enquanto ser humano implica uma variável dose de novidade. No âmbito profissional, a felicidade cultural (de quem está imerso na descoberta de si e do outro como seres sensíveis e pensantes, criadores e mantenedores de tradições, questionadores e vivenciadores de experiências variadas) gera humanismo no relacionamento. Na esfera pessoal esta felicidade pode contribuir sobremaneira para uma excelente qualidade de vida.
O conhecimento estrito da área do conhecimento que escolhemos como meio de ganhar a vida é útil e necessário, mas não basta. Essa era a mensagem que me trazia aquele excelente médico que muito me ensinou (e não só de técnica) no passado.
Dentro disso, vale refletir sobre o que vamos buscar “fora” da “nossa área”. Coloquei entre aspas a palavra fora porque sei que não há nada fora. Tudo o que aprendemos naquilo que as classificações naturalmente artificiais consideram fora da nossa área, estão, na verdade, dentro. Merecem e devem ser incluídas. Um médico (e encontro mais facilidade neste exemplo por ser essa a “minha área”) que conhece a história das religiões, particularmente do cristianismo no mundo sob esta influência religiosa, pode partilhar momentos especiais com aqueles que sofrem; gosto de descrever determinadas enfermidades com uma terminologia retirada da política ou da economia, às vezes da termodinâmica, outras da mitologia. A escolha depende do cliente e dos seus interesses. Às vezes o “sair do assunto” ajuda-nos a encontrar os trilhos da compreensão do assunto. Também coloquei entre aspas as palavras ‘nossa área’, porque não há esse negócio de uma área nossa exclusiva. O terreno humano é necessariamente não especializado e isso é um importante fator que nos distingue dos demais animais, grande parte deles tremendamente especializados. Pode até que haja necessidade de uma especialização profissional, em dado momento, em determinada situação, mas na vida (e vida inclui profissão), especialização é perda, restrição, anquilosamento, redução dos horizontes. Abusiva especialização lembra o mal de Alzheimer, onde a vida de relação se esvai em um desfiladeiro de restrições decorrentes das dificuldades neurológicas, cada vez maiores, cada vez mais amplas, até que nada mais existe a não ser um vazio de conexões. Tão amplas as restrições tão restritas as relações! Não ‘alzheimerizemos’ a vida.
Todas as pessoas do meu conhecimento que guardam em si a felicidade, ou pelo menos sua possibilidade, têm essa competência para aprender que as faz estar todo o tempo, consciente ou inconscientemente, submetendo seu modo de vida, ou suas crenças de como as coisas devem ser feitas ou são, a uma dúvida. Nem sempre têm consciência do que fazem, mas fazem. Uma reflexão é uma atividade consciente, mas ouso dizer que algumas pessoas refletem inconscientemente sobre suas vidas. Isso lhes aumenta a felicidade. Claro que existem aqueles que fazem esta reflexão em plena consciência. Mas isso não vem ao caso, o valor real para si e para os demais reside nessa postura de que o que fazemos ou acreditamos agora pode não ser absoluto. Isso não quer dizer que estas pessoas abandonem suas crenças mais básicas, ou que mudem com a moda. São como o nosso corpo, que só vive, e apenas vive, na medida em que perde para o mundo grande quantidade de elementos que o compõe, assim como permanentemente renova-se com novos elementos. Eliminamos grande quantidade de células da pele, das mucosas, substâncias químicas que eram parte de nós antes e que agora se vão pelo suor, pela urina etc. Adquirimos um mundo novo cada vez que nos alimentamos e, contudo, continuamos sendo as mesmas pessoas. Não fossem estas mudanças e estas permanências o que seria de nós?
Assim, quando me sento a lembrar do meu dia, ou de fatos do meu passado remoto, pergunto-me algumas coisas e constato outras. Aprendo no mero recordar, porque a recordação passa pelo crivo da reflexão. Escrever é um dos meios que uso para refletir. Fazer isso é garantia de felicidade? Sim e não. Agora neste momento sou pleno no meu escrever, amanhã ou mais tarde pode ser que não esteja assim, mas para o amanhã os seus cuidados como disse Jesus. Agora, nesse instante, escrevo e sou. Está bem.
Aureo Augusto.
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