Beli postou-se, com suas filhas, à porta de casa. Carregava uma garrafa pet cortada, à guisa de vaso, cheia de flores multicoloridas. Ficou ali por muito tempo. Esperou um bocado de tempo. Olhava para a ponta da rua enquanto conversava e manifestava suas preocupações e sua solidariedade à mãe de Alisson (que àquele momento se despedia pela última vez do filho em sua casa). Quando finalmente o enterro chegou, as lojas, os amercados, os restaurantes fecharam as portas como é de costume aqui no Vale do Capão. Beli pôde dispor suas flores para o jovem que não mais as veria.
Conforme o desejo do próprio Alisson, uma grande quantidade de motocicletas precedeu o cortejo – ele queria também cavalos, mas foram poucos. Vieram motociclistas de longe, pois ele era uma pessoa muito querida, tinha muitos amigos... Alisson e Rafael eram unidos até a medula, embora às vezes se desentendessem, com muito mais frequência estavam juntos nas bandalheiras que aprontavam, desde crianças. Quando Rafael, cansado de tantas confusões que armou por aqui, resolveu ir morar no Pati, Alisson foi com ele. Os dois fizeram um pacto (assim contam os amigos e o irmão) de morrer juntos e assim fizeram. Foi na noite de sexta para sábado, vésperas do carnaval. Rafael havia bebido e como sempre tentava arrumar confusão, desta feita com Dió, um rapaz que é muito tranquilo, que nunca – ao que me conste – teve briga com ninguém. Isso foi no bar/mercearia de Seu Joãozinho, pai de Dió. Por sorte (?) Alisson apareceu querendo comprar uma garrafa de vinho. Então Dió lhe pediu que levasse de graça a garrafa desde que dali retirasse seu amigo. Daí saíram de moto, foram ao Rio Grande, depois voltaram decididos a retornar ao lar. Tiveram uma forte discussão na qual quase saem no braço, mas depois fizeram as pazes e resolveram ir para Palmeiras, apesar de já ser 23 horas, sabe-se lá por que. Perto do Riachinho, havia uma caminhonete para da havia já algum tempo. Chocaram-se contra ela com tal violência que o veículo estacionado, apesar do seu peso, foi deslocado de onde estava por mais de 1 metro. Pouco depois Enilson, pai de Alisson, vinha por coincidência passando no local e Vilson que estava com ele alertou-o de que se tratava do seu filho. Ele não acreditou de imediato e foi olhar o rosto, reconhecendo-o e recebendo dele o último suspiro. Rafael ainda respirava e foi conduzido ao hospital de Irecê. No momento em que escrevo estas linhas, ele está sendo conduzido para a sepultura, após dois angustiosos dias na UTI.
Diversos pensamentos me vêm à mente ao observar todos os acontecimentos ao redor destas dores. Os dois rapazes eram pessoas muito aflitas, conquanto não o reconhecessem. Alisson teve uma profunda decepção quando contava em torno de 8 anos. Rafael, embora tenha tido uma mãe cuidadosa que o amava e o pai que ali estava no dia a dia, sempre foi muito revoltado. Ambos destacavam-se pela inteligência. Alisson era um mecânico autodidata de mão cheia. Suas motos, ele as construía a partir de peças velhas. Era bem unido a Dê, seu irmão. Criaram uma borracharia e oficina de motos que tem bastante movimento. Mas Dê tem a cabeça mais no lugar e recentemente sofria (e brigava) com o irmão pelo fato de que este vivia uma vida destrutiva. Aconselhava-o, porém sem sucesso. Interessante que, apesar da vida desregrada, os adultos comentam que eles eram muito respeitadores. Quando eu tenho que atender alguém em casa, às vezes tenho que enviar a pessoa para o hospital, o que me faz voltar pra casa a pé ou de moto-taxi, pois o carro que veio me buscar fica com a tarefa de levar o doente. Se Alisson me visse nesta situação, interrompia seu que fazer e me levava em casa de moto, dirigindo com surpreendente cuidado e jamais aceitava pagamento. Tinha por mim uma consideração muito grande. Rafael, depois que se casou com Sinéia, filha de Maninho, ficou mais tranquilo e fez uma horta no fundo do quintal de cujos frutos sempre me regalava alguns. Gostava de me mostrar as suas produções e, mesmo bêbado, me tratava com deferência. Mas os dois, quando saíam para a farra e bebiam, deixavam aflorar aquilo que lhes fazia sombra à doçura e as coisas costumavam terminar em brigas ou acidentes. Alisson sofreu 5 acidentes graves de motocicleta – em um deles derrubou 4 moirões de cerca e ficou mais de 2 horas desacordado. Dentro lá do seu pacto, um não deixava o outro em paz, pois quando Alisson atendia aos apelos de Dê para trabalhar com ele, Rafael o chamava para o mundo tumultuoso e quando Rafael descansava no conforto simples de um lar com esposa e dois filhos pequenos, Alisson o requisitava. Combinaram uma vida atormentada e foram fiéis um ao outro e à sina que elaboraram para si.
Os mais velhos olham-se em interrogantes. Os jovens demonstram sentimentos ambíguos, inclusive de revolta. Todos se esquecem de que aqui nesta região as vidas têm sido apaixonadas. Muitos se deixam levar pelas fortes paixões, por raivas atemporais, medos infundados – ou fundados em elucubrações decididamente bizarras – pactos nem sempre estabelecidos assentados sobre fidelidades intrigantes, ádvenas embora aparentem ser autenticamente próprias. Coisas como um grupo de estudantes perderem o ano porque uma delas não se saía bem em dada matéria e as demais não queriam ir adiante sem a companheira – algo bonito, mas que pode virar coisa perigosa. Aqui, as leis são aquelas que obedecem ao que deseja a vontade; e esta vontade pode ser a da família, pode ser algo parecido com uma teimosia infantil, pode ser fruto da crença em uma condenação declarada (ou sub-reptícia) por uma mãe, um pai, pela sociedade, por um grupo de amigos, sei lá... As leis consuetudinárias locais muito dependem do gosto. É meu amigo ou faz parte do meu grupo político, então se faz algo errado pode ser visto como errado, mas aceita-se, ou passa a ser certo. O mesmo erro feito por um estrangeiro, forasteiro, por alguém de outro grupo ainda que nascido aqui, é abjeto pecado. Talvez este comportamento em que o iníquo pode adquirir ares de virtude derive das agruras dos tempos em que o diamante era farto, quando grupos se digladiavam pela posse das áreas mais ricas e onde a fidelidade ao bando era a maior de todas as virtudes e talvez única possibilidade de sobreviver, quando não de enriquecer. Talvez. Porém trata-se de um anacronismo que seguramente nos faz mal nos dias de hoje.
O povo conta muitas histórias e nelas dor e sofrimento, abandono e horrores se abraçam na construção das lendas. Nelas lições desvelam-se para o ensino dos jovens, nelas também, encontramos as marcas daquilo que já não deveriam fazer parte da vida.
Recebam um abraço melancólico de Aureo Augusto.
Nossa, doutor. Que post cinza.
ResponderExcluirE a história de Alisson e Rafael me impressionou pelas escolhas deles, quiçá cármicas.
Que Deus os encaminhem À Luz. Amem.
Receba um abraço confortador.
Jussiara
E triste realmente constatar essas ocorrências, principalmente quando habilidades e/ou virtudes são apresentadas ao lado de desregramentos e obscurecimentos da razão. Parece que o espírito, pressionado pela carga de culpas de vidas anteriores, procura quitar-se de dívidas, mas, obviamente, enveredando pelos caminhos errados.
ResponderExcluirO mais triste de tudo não ó aparente final de uma encarnação que poderia ter melhor aproveitamento, mas a certeza de um retorno para consertar o que fez de errado.
Abraço reencarnatório.
Vcs fizeram comentários bem pertinentes. O carnaval aqui foi bem cinza. Pra ter uma ideia, teve um show de Luis Caldas em Palmeiras. Esperava-se que o povo do CApão fosse em peso. Não foi quase ninguém.
ResponderExcluirEstamos tentando tirar as lições.
abraço procês,
Tive a honra de, por 5 meses, conviver com uma pessoa que, sempre falei, - esse é a cara do Capão. Foram 5 meses trabalhando com ele no ICMBio, era uma comédia "piririu, piririu...ai ai ai ai ai... " inesquecível rsrsrs!. Alisson... Companheirismo, coragem, amizade... ações que me fizeram acreditar que temos pessoas puras, puras de sincera amizade. Infelismente fiquei sabendo da noticia cercade uma semanda depois... até hoje não acredito. Fique em PAZ meu amigo!
ResponderExcluirRÔMULO ALVES DOS ANJOS LOPES