Partilho um texto (excerto de Carta Sobre a Felicidade – a
Meneceu, publicado em grego e português pela Editora UNESP em 2002) de um
precursor de todo o movimento que, em dado momento se autodenominou alternativo. Epicuro, seu autor, talvez
tenha sido o primeiro a propor a formação de uma comunidade alternativa, nos
moldes pensados no século passado. Viveu na Grécia. Em 306 a.C. fundou em
Atenas uma comunidade que atraiu gente de muitos lugares, onde as pessoas
viviam plantando o que comiam, encontrando prazer na vida simples, vivendo
frequentemente em barracas:
Nunca devemos nos esquecer que o futuro não é nem totalmente nosso, nem
totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse
por vir com toda a certeza, e nos desesperarmos como se não estivesse por vir
jamais.
Consideremos também que dentre os desejos,
há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são
necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são
fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros,
ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a
direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade
do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz; em razão desse fim
praticamos todas as nossas ações para nos afastarmos da dor e do medo.
...
Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso
escolhemos qualquer prazer. Há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando
deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que
consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior
advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo.
A filosofia de Epicuro está centrada no fato de que todos os
seres procuram sempre o prazer (aqui significando bem estar). Devemos
considerar que seu exemplo é bem atual, inda mais neste momento, de
globalização (que a rigor começou na pré-história, ampliou-se com as navegações
portuguesas e agora culmina com a cada vez maior interdependência comercial e
com a internet) das relações entre as diversas pessoas, culturas, nações,
economias. Mesmo morando no Vale do Capão, sei tanto do que acontece com meu
vizinho, em tempo real, como do que se passa no Irã, na Indonésia, ou no Kwait.
Somos uma comunidade terráquea e devemos atentar para o fato de que os nossos
desejos não fundamentais, bem como os não naturais, frequentemente instaurados
em nós por uma mídia a serviço do lucro de corporações que não levam em
consideração a sustentabilidade, dizia, que tais desejos podem ser uma
declaração de morte ao nosso futuro.
Vai daí que precisamos aprender a lidar com o prazer, uma
vez que a nossa recusa a tratar isso da forma adequada nos tem levado a
deixar-nos ser vítimas de uma mídia que nos impõe a medicalização da vida, e a
agrotoxificação do mundo. No afã de atender a prazeres imediatos não podemos
nos considerar meras vítimas inocentes de corporações que querem lucro a todo
custo, uma vez que em grande medida (e sem querer tirar a responsabilidade – ou
irresponsabilidade – das grandes empresas e governos) nós também somos agentes
ativos de nossa própria desgraça ecológica.
“O futuro não é
totalmente nosso, nem não-nosso”.
Mas é nossa a decisão de como vamos atuar no presente com vistas ao
futuro. Isso tanto em nossa vida particular quanto na relação com o meio
ambiente. Lembrando Morris Bermann (in El Reencantamiento del Mundo (Cuatro
Vientos, Santiago-Ch) quando nos diz que o jeito com o qual lidamos com nosso
corpo é isomórfico à nossa ação com o ambiente entendemos que agrotoxificamos o
ambiente na mesma medida em que medicalizamos nossa vida.
Exemplo disso é a forma imediatista com que lidamos com
nossas dores físicas e psíquicas. Os pais não suportam suportar a dor nos
filhos e em si. Para não sentir a mínima dor, desconforto ou doença aguda nos
medicamos assiduamente, o que traz consequências avassaladoras para a saúde,
seja por causa de efeitos colaterais, seja por que deixamos de ter competência
para lidar com a dor e a perda. Aos poucos somos tomados por um narcisismo que,
em última análise é autodestrutivo (sobre isso veja Dana Zohar, in O Ser
Quântico). E acabamos por agir com o ambiente, como se estivéssemos fora dele e
para sermos por ele servidos . Dessa
forma e no desejo de atender a desejos tornados essenciais, mas que não passam
de não naturais, ou não necessários, acabamos por sobre exigir da Terra que “pode prover a toda e qualquer necessidade,
mas não a toda e qualquer cobiça” (Gandhi in Minha Vida e Meus Encontros
com a Verdade, Diffel, São Paulo).
Saídas existem e são muitas, porém todas passam pela
consciência. Passam por aprendermos com o passado, netamente com o século XX, o
das ideologias, onde o culpado era sempre o outro (capitalistas, comunistas,
fascistas, democratas, negros, brancos, europeus, cristãos etc.) que deveria,
preferencialmente, ser eliminado. Por assumir a responsabilidade pelos nossos
desejos e pelo futuro, bem como com pelo presente. Sem ver as medicações como
obra (apenas) de interesses escusos, entendê-las como úteis em determinadas
circunstâncias, mas evita-las sistematicamente. Procurar encontrar soluções
para o desabastecimento de grande parcela da população mundial sem o uso fácil
de insumos artificiais e alheios aos costumes locais. Não alinhar-se com
hegemonias óbvias, apenas porque poderosas, porém não esquecer que aquilo de
hegemônico assim se tornou não por obra do acaso. Entender as injunções que
criaram um mundo tão injusto, tão hipócrita, tão terrível, mas que nos traz
maravilhas que merecem contemplação. Estas são algumas das tarefas que devemos
assumir.
Nossa tarefa não é fácil. Estamos sendo convidados a rever o
mundo que criamos não mais com o olhar meramente e facilmente crítico
depreciativo. É tão fácil derrubar, desconstruir, quando não temos competência
para colocar-nos ombro a ombro com o nosso próximo. Por isso nossa tarefa é
difícil. Somos nós, os que padecemos de narcisismo, de sedentarismo (ainda que
seja uma forma de sedentarismo psíquico que nos faz acreditar em teorias nas
quais mais uma vez clivamos o mundo entre pessoas certas e pessoas erradas).
Nossos próprios desvios psicológicos e nossas necessidades narcísicas nos fazem
condenar aos demais e repetir toda a história da humanidade onde sempre criamos
a necessidade de ricos e pobres, líderes e liderados (rigidamente estabelecidos),
nobres e plebeus, ortodoxos e heterodoxos, salvadores do mundo e destrutores do
mundo, absolutamente bons e absolutamente maus, este partido e aquele partido...
Talvez esta globalização que estamos vivendo, com tudo de
absurdo que há nela, seja enfim uma oportunidade de viver como se vivia na
aldeia, um convite a sairmos do conforto umbilical de estar certo das nossas
certezas. A chance de desfrutar prazerosamente do ato de viver a satisfação dos
nossos desejos naturais e até alguns a mais, atendendo também ao desejo de que
as gerações futuras possam desfrutar do mesmo prazer de cuidar do mundo.
Recebam um abraço global de Aureo Augusto.
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