terça-feira, 17 de maio de 2016

ESSA MERDA DE SUS!

“Essa merda de SUS!”. Foi com essa frase dura que um turista se referiu ao Sistema Único de Saúde quando veio ao posto. No entanto, aqui, nesse lugar tão ruim em seu julgamento, ele foi recebido com o devido respeito e cuidado. Embora estivéssemos em um posto de saúde da família, que se dedica ao cuidado da comunidade, das famílias que compõe esse pequeno universo retido entre as montanhas e o céu estrelado nas noites feitas de grilos e corujas, pois bem, em que pesem os insultos, foi atendido por mim, medicado e saiu bem.
Ele nem se deu conta que a Unidade de Saúde da Família de Caeté-Açu, é parte do SUS.
Muita gente detesta o SUS, apenas porque não precisa dele, ou não conhece. Ou, e isso é muito sério, não conhece o povo brasileiro que não vive nos condomínios cercados de muros e arame farpado, protegidos por seguranças (que moram em lugares desprotegidos).

O povo do Vale do Capão, espera para ser atendido. Mas é atendido, de regra, no mesmo turno em que procura o serviço. Dirão vocês que isso aqui é uma ilha fora do mundo. Não é não. Em Baixão Velho, povoado em Seabra, bem distante da sede ocorre o mesmo. Assim também em Água de Rega, outro povoado, desta vez em Iraquara. Ali também as pessoas são atendidas sem esperas absurdas. Na mesma Iraquara, temos Iraporanga, cujo posto é lindo, com jardim interno e horto de plantas medicinais...
Destes postos, alguns têm medicações, outros não, o equipamento nem sempre está em bom estado, e os funcionários não estão satisfeitos com seus proventos. Mas cumprem seu papel. O que seria da gente vizinha a estes postos sem o SUS?

Um vizinho meu teve um câncer no joelho esquerdo. Foi o SUS quem garantiu cirurgia e prótese. Esse rapaz jamais teria condições de se recuperar sem o SUS. Uma senhora da Lagoa (bem perto do povoado onde vivo) acaba de ser submetida a uma histerectomia que lhe salvou a vida. O SUS lhe salvou a vida. Um homem que desprezou a Agente Comunitária de Saúde que foi cadastra-lo em sua residência, porque não precisava do SUS, veio ao posto, pois carecia de uma cirurgia e os recursos de que dispunha não eram suficientes. Fará a cirurgia, e se bem o conheço depois da alta irá se queixar com os amigos dos defeitos que encontrará em sua internação e provavelmente esquecerá que dos males que possa ter sofrido nenhum deles superará o bem que receberá. Tomara ele mude e veja que o problema não é o SUS.
O SUS é solução. Mas esta solução maravilhosa carece de aperfeiçoamento, precisa de melhoras, de mais recursos. Escutemos a queixa dos usuários!
Penso que poderíamos diminuir salários, verbas de gabinete, jetons e tantas outras benesses que os deputados e senadores auferem e empregar tudo isso para, no âmbito do SUS, fomentar, incentivar, propagandear o autocuidado, mudanças de hábitos alimentares, atividade física etc. Ah! Se isso acontecesse teríamos menos hospitais, pois não haveria tanta necessidade de filas. Menos doentes, menos doença, mais alegria e saúde.

Porém em um ambiente onde a publicidade praticamente nos impõe beber e comer o que há de pior e onde esquecemos a atenção básica fixando-nos na propaganda que a inauguração de um hospital possibilita, o SUS terá sérias dificuldades.  Em um país onde a politicagem mesquinha é mais importante que as pessoas, o SUS continuará sendo o bode expiatório atrás do qual se esconderão os ignorantes, os negligentes, os políticos e empresários ricos em má fé.


Recebam um abraço SUSico de Aureo Augusto

segunda-feira, 11 de abril de 2016

DOS NOMES DAS PESSOAS NO VALE E DOS REMÉDIOS E SUAS CORES E JEITOS

O nome dela é Maria, posso dizer sem preocupações éticas, mesmo sem pedir permissão, pois aqui no Vale do Capão é tanta gente com o nome Maria que não é possível encontrar ninguém com apenas essa pista. Temos Maria da Conceição, da Glória, do Amparo e da Paixão... pra não falar de Aparecida, das Dores, Emília e tudo o mais. As Marias, nas fichas do posto de saúde ganham longe pros Antônio, José, Raimundo e mesmo para os Sebastião que é o nome do padroeiro do lugar. O nome Sebastiana não tem como contar já que os pais homenageiam o santo, mas fico besta de ver Célia (que todos chamam assim, mas na verdade é Sebastiana), ou Antônia, ou Emerenciana, ou Neuza (tudo Sebastiana).... Fico pensando no porquê de botar um nome para fazer a homenagem ao santo e depois desmerecer chamando por outro nome que nada tem a ver com o original. Mas assim é, e se é, está feito e não vai ser eu a mudar o costume que não é nenhuma ruindade demais.

Mas comecei a conversa por outra coisa e desandei por outro assunto. Volto:

Pois bem, a Dona Maria em questão, uma senhorinha muito deliciosa com sua carinha de passa de uva, terna no jeito de falar, ela me veio pedir uma receita de Hidroclorotiazida, que já usa de um tanto de tempo porque tem hipertensão e já de outras eras lhe foi receitado por um médico.

Mas ela me explicou que queria uma genérica, mas de uma marca específica. Nem tentei dizer que todos são Hidroclorotiazida 25mg, que o governo fornece, bastando ir na farmácia com os documentos e pronto. Não tentei porque já havia tentado com outras Marias e outros José e João e Sebastião e eles não querem acordo. Me dizem: “Sabe dotô, o qui é bom mermo pra mim é aquele vermeinho”. Já tentei explicar que a cor depende da fábrica, mas a substância é a mesma. Não adianta. Não tem o que discutir. Apenas tentar descobrir onde encontrar o vermeinho, ou o da caixa pequena e gordinha...

Seguramente há algo por detrás disso, talvez alguma espécie de efeito placebo (que não é algo desprezível, já que pode desencadear a competência orgânica de resolver-se a si mesmo) ou de simpatia – tanto no sentido comum, mágico, quanto no sentido de que desperta uma afinidade que pode potencializar seu efeito.

Talvez algum dia alguém mais preparado do que eu se disponha a estudar estas preferências e quiçá descubra algo bem interessante e útil nessas escolhas. Por enquanto, já fiz a receita de D. Maria e acrescentei uma observação para a balconista da farmácia, indicando que ela quer aquele específico, pois me agrada vê-la feliz.


Abraço de receita certa pra vcs de Aureo Augusto.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

LUZ

Uma casa no meio do mato, uma luz acesa na varanda apesar de todos já ressonarem em seu interior silencioso. Tudo breu, escuridão total e a casa, uma ilha de luz.

Um dia olhei o mapa do mundo, uma foto feita lá do espaço, era noite e o mundo estava repleto de lugares luminosos, faíscas e rios, caminhos feitos de vagalumes elétricos bordejando o mar, imiscuindo-se pelas imensas áreas interioranas dos lugares aonde fazia-se isso possível.

Mas em vastas áreas ainda imperava a noite. Fundas áreas vazias das estrelas minúsculas criadas pelos seres humanos. Pensei comigo mesmo em quando não houver mais áreas vazias de luz. Perguntei-me se naquele então seremos todos iluminados.

Será que nosso afã de iluminar a noite não passa pelo nosso desejo de iluminar-nos a nós mesmos?

Mas será que quando o mundo esteja completamente tomado pela luz elétrica nós um dia apagaremos todas as luzes no são desejo de encontrar a nossa escuridão e o nosso silêncio?

Sim, porque como seremos nós mesmos, inteiros, sem a escuridão que nos habita? Buscamos, mesmo sem o perceber, a inteireza. Talvez naquele dia em que a Terra resplandeça no Universo a humanidade queira voltar a ser inteira, se é que algum dia fomos íntegros.

Os olhos se cerrarão permitindo que o dia durma fazendo a noite dos seres sem forma que habitam a nossa alma ditosa de si quando plena.


Em 3/4/16 recebam um abraço luminoso de Aureo Augusto

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O SILÊNCIO DA CORDILHEIRA

Uma das belas coisas de Santiago de Chile e a onipresença da Cordilheira dos Andes.
Já vim aqui muitas vezes e, inclusive no final dos anos 70 do século passado vivi na cidade por um ano e sempre me atraiu a majestade das montanhas cuja rude beleza ilumina a memória que tenho deste lugar.
Porém ontem, pela primeira vez notei o poderoso silêncio que emana da cordilheira, tão forte que sobrepuja o bulício da cidade.

Caminhava na rua atento aos sons do lugar, aos cantares distintos dos diversos pássaros, os diferentes ruídos dos muito diversificados veículos, pessoas conversando, alarmes, sirenes de histéricas ambulâncias, passos humanos... Talvez porque imerso na observação sonora, quando meus olhos mais uma vez tocaram as alturas das montanhas percebi seu silêncio. E, desde então não me canso de escutá-lo.

E sei que só agora percebo tal silêncio e em tal intensidade apenas porque finalmente tornei-me capaz dessa ausculta. Não porque só agora acontece – aí esteve o imperioso vazio todo este tempo à espera da competência auditiva.

Hoje na feira de rua, na calle Arrieta a polifonia cacofônica das feiras de todos os lugares estava condignamente reproduzida. Cada vendedor alertava os fregueses da beleza de suas frutillas, moras, arandanos, plátanos, paltas, cebollas (enormes), sapallos (gigantescas a tal ponto que são cortadas com serrotes – são as abóboras) etc. Alguns gritavam esganiçadamente, com um tom de voz choroso que semelha cantos flamencos em vitrola antiga mais lenta que o normal, outros mais discretos, porém repetindo o mesmo mote centenas de vezes na esperança – penso – de que o público compre apenas para que parem a lancantina, outros com voz rouca anunciando a novidade de todas as feiras, de todos os dias e estações como se realmente fossem novidades...

Mas acima de tudo, pairando como um condor arquetípico, o silêncio dos picos inatingíveis sustentando vozes, cantos, choros, vida, latidos, enfim, as batidas do coração desta singular cidade.

Recebam um abraço santiaguino de Aureo Augusto 

sábado, 13 de fevereiro de 2016

VIDA!

Hoje, 12/2/16, na reunião de equipe, entre outras coisas, conversamos, não sei como nem porquê esse assunto entrou, sobre a morte. Alguns diziam que tem gente que simplesmente desliga, mas Ni, que é agente comunitária de saúde, afirmou que nunca viu ninguém morrer numa boa, sempre tem sofrimento, careta, como ela disse.

A morte é uma ocorrência frequente nos serviços de saúde, e, nos lugares pequenos como o Vale do Capão, temos uma proximidade, uma intimidade uns com os outros que torna a morte um algo que toca em todos. O nosso povoado está crescendo e há sinais de diluição dessa intimidade, porém, mesmo assim ainda nos sentimos pertinentes à “família” que somos.
E sempre que o assunto bordeja o fim da vida, me lembro de Montaigne, que nos seus Ensaios trata do assunto algumas vezes. Ele nos diz que a vida em muito é uma preparação para a morte e que aqueles que viveram bem, morrem bem. E não é que tenho notado isso aqui na restrita vizinhança que tenho!

As pessoas que viveram com algum grau de plenitude e autonomia tendem a morrer com tranquilidade. Como se já tivessem cumprido o que tinham que viver e fazer, como tal, sentem-se propensos ao descanso razoável.
Mais ainda: Noto que tem mais medo de morrer quem menos gosta de viver, ou, dito melhor, quem menos degusta o viver. Sei que a vida tem momentos difíceis. Sei também que a vida de quem vive em lugares conflituosos há de ser atroz. Ou de quem passa fome.

Sim, a morte há que depender da vida...
Então o texto encalhou na máquina enquanto a noite chegou e hoje, 13 de fevereiro, sento-me no parapeito da janela enquanto espero um cliente para atender. A quantidade de pássaros é absurda. Parece um congresso de aves! Corrupiões fazendo ninho na minha varanda, sábias sabiás, bem-te-vis (nada vis, deliciosamente belos), garrinchas de canelas secas, aranquãs, bandeirinhas, sofrês, andorinhas (até andorinhas e acho que não é época) e uma turma que não conheço... tantos pássaros em tão grande número e animação, gritando Vida com tonalidades múltiplas.

Confesso que não sei bem o significado disso tudo, se é que há. Há, no entanto, um sentimento sentido de que há uma pertinência que me traduz em mim mesmo o que o mundo me traz.

Recebam um beijo no coração de Aureo Augusto.


sábado, 23 de janeiro de 2016

GLÓBULOS MÁGICOS DA REALIDADE

Estava já no final do expediente, ia de um lado a outro pra tentar resolver a situação de uma mulher que chegara em mau estado e queria eu que fosse para o hospital. Procurava o motorista da ambulância, explicava ao marido... Maria Alda passava a chuva na varanda do posto, parei um pouco pra olhar o mundo encharcado.

O motorista já vinha e Cida, técnica de enfermagem, estava pronta pra acompanhar a mulher até Palmeiras donde seria recambiada até outra cidade (com hospital). Maria Alda é da zona rural de Boninal, casou-se com um rapaz daqui do Capão e adaptou-se primorosamente ao cosmopolitismo daqui. Todos os dias desce do Engenho Velho, onde tem a horta e a casa, a vender verduras, artesanato ou cristais brutos, mas mais do que tudo, vejo que gosta de bater perna e conversar. O mundo espalhava-se à tarde e as cachoeiras rugiam nas serras (contei oito entre o Batista e a Rua). Gente de tudo quanto é canto assombrando-se com tanta água e beleza. Dizia Alda que seus tomates estavam estufando e rachando, que tomate não gosta muito de chuva, complementava que ainda bem que teve o período de seca, quando seus tomateiros produziram como nunca. Ri comigo mesmo da beleza de sua fala inocente, contente de sol e feliz de chuva.

E lá se foi a ambulância... fiquei olhando o mundo enquanto voltava a pé pra casa, vencendo os quatro quilômetros que separam e unem minha casa ao posto de saúde. Escutava a água embelezando o mundo, construindo verdes e sorrisos. Amigos se aproximavam e ríamos juntos enquanto meu passo coincidia com o deles e depois se despediam nas curvas de seus destinos...
A ambulância atolou feio e não teve jeito que não voltar, pois naquela noite ninguém saiu do Vale. Cida me telefonou pra ver o que fazer. Recomendei mais soro na veia, manter os demais procedimentos e a técnica dormiu aquela noite no lugar de trabalho. Gosto de ver Cida trabalhando no seu silencio de poucos risos, mas labor cuidadosa.

Gosto de deliciar-me com cada pessoa e coisa que me atravesse o passo, vive na minha campanha por mais ou menos tempo, ou se vai. Cachoeiras ou poeira no pneu nos carros; lama fazendo pés deslizarem; Seu Joãozinho sentado na porta destilando sabedoria em palavras rápidas; mangas; ruído ríspido da enxada na terra fria, abrindo passagem pra água íngreme; pitangas; crianças em bandalheiras discretas na água e terra propícias a bolos de lama, represas e resfriados; maçãs no pezinho tão pequeno no meu quintal, gotas de água pendentes das folhas, indecisas se caem ou não; vozes dentro das casas ininteligíveis mães chamando filhos a banhar-se; homens nos bares relaxados em suas prisões e liberdades; um violão ali; pássaros titilando; caio no meio desses glóbulos de vida deslizando-se sorrateiramente na minha realidade tornando-a estranhamente mágica e deliciosa quando noto. Há, portanto, que notar.


Recebam um abraço sorrateiramente mágico de Aureo Augusto.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

AGRADECIMENTO PELO AMOR

Não há nada mais deliciosamente invasivo do que o amor! Nos últimos momentos tenho sido agraciado por numerosas demonstrações de afeto que me deixam como que em transe, embebido em um oceano que me alcança sensorialmente, boiando em uma luz de uma alegria suave e benéfica. Sorrisos e afagos, olhares e abraços, ternura e esperança...

Tantas pessoas interromperam seus afazeres para me alcançar com suas felicitações e seus desejos de bem-estar e felicidade...

Então aqui estou no primeiro dia depois do dia 17/1 quando festejo meu aniversário e espero que todos vocês possam ler esta minha mensagem e através dela abrir o próprio ser para sentir o que de mim emana de amor e de agradecimento por vocês terem tido a bondade de estar em minha vida e torna-la mais bela e melhor.
Grato, grato, grato!!!


Aureo Augusto

domingo, 6 de dezembro de 2015

O DONO DO CORPO

Foi Gilsinho quem me contou na feira, hoje mesmo, aqui do Vale do Capão, entre as conversas de preocupação com os incêndios (que pra Deli, só vão parar mesmo na hora em que a chuva pare de só beijar de passagem os campos e fique um pouco mais acariciando as serras), vendendo um cafezinho para um, para outro, e bolos e pão de queijo que Dalva faz feliz.

Gilsinho é dessa gente cuja conversa nunca é de se jogar fora, mas muito de verdade que fala o faz disfarçado em riso e piada. Por isso diz o que crê e pensa, o que quer e pode, sem ofender. É homem de não ferir ninguém, evita, não por medo, mas por natureza própria. Disse para mim que quem falou para ele foi o pai, que por usa vez aprendera de um velho bem velho amigo.

Primeiro me perguntou (e aos demais ao redor) quem é o dono do corpo e eu (e ninguém) soube responder. Então explicou que cada órgão um dia contava para todos saberem suas funções e qualidades. A boca falou do comer e do falar, o nariz do respirar e saborear o cheiro das coisas, os ouvidos dos sons e do alerta que podem trazer, a cabeça do elaborar os pensamentos que no corpo crescem e por aí vai... apenas o 150 calou, mas agiu e se fechou.

E o corpo ficou um tempo sem descomer. Adoeceu, inchou, sofreu, e foi piorando e piorando. Enquanto se “distinhorava” o médico foi chamado e percebeu o mal.
Com muito cuidado abriu o ânus e este permitiu o esvaziamento do corpo. Foi assim que todos os órgãos tiveram que render homenagem ao dono do corpo, o cu.

Recebam um abraço em gargalhada de Aureo Augusto.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

PREVENÇÃO DOS INCÊNDIOS - A VOZ DAS MULHERES DAQUI

Os incêndios ainda castigavam a Chapada e ao redor do Morro Branco, a imponente pedra vertical que tenho bem defronte de minha casa, quando comecei este texto. A turma que labutava na intenção de apagar as chamas se exauria sem sucesso definitivo. Em um momento parecia que passou, mas no fundo das profundas fendas que caracterizam a região dormitava o fogo. O dia e o sol tomavam o céu e as chamas respondiam, lançando-se ao alto e queimando o que restava do mato ressequido.

Por isso, voltei a tratar do assunto com as mulheres idosas que participam da ginástica na quarta-feira, no posto de saúde aqui do Vale do Capão. Mais uma vez elas me alertaram que antigamente não se preocupavam muito com isso. Pois que o fogo parava na mata. Todos os anos se incendiava os altos ermos. Os vaqueiros se encarregavam de queimar os Gerais no estio, para que, logo após a chuva, pudessem trazer o gado para comer o broto novo. O fogo consumia a vegetação baixa, gramíneas em geral, cujas raízes conservavam a vida apesar do calor. Mas o incêndio não atingia os locais de mata, pois ali a humidade garantia a vegetação. Dalva alertou que naquela época chovia mais e a mata era mais úmida que hoje. O que dava mais segurança.
Porém as outras comentaram que estas queimadas impediam um excesso de baceiro. Assim chamam o mato morto, folhas secas, que se acumula no solo. É esse baceiro úmido que segura a onda do fogo na mata, mas na serra, quanto mais baceiro, mais poderoso é o incêndio e tão forte que pode alcançar as ramas das árvores, queima-las, às vezes, irremediavelmente. Nestes casos a recuperação é demorada e difícil.

Um amigo, Emanoel Requião, me contou que uma floresta nos Estados Unidos que era sumamente preservada, quando pegou fogo acabou. Então perceberam por lá que pequenos incêndios são bem-vindos! Ele usou uma frase tocante: “A Chapada é amiga do fogo”. Comentou que certas sementes carecem do carinho quente para no devido tempo brotar. E isso coincide com o testemunho das nativas que me disseram que depois do fogo, logo com as primeiras chuvas, a macela brota lindamente e a produção é maravilhosa. Segundo elas o candombá (ver post anterior) também brota e flore que é uma beleza. Acrescentam que certas plantas comestíveis só aparecem nos campos depois que há queima, tais como a Maria Gondó e o Cariru de Veado.
No trabalho com as idosas ocorreu-nos que a prevenção possível para estes grandes incêndios é garantir pequenas queimadas com a supervisão e vigilância dos brigadistas, para eliminar o excesso de baceiro. Assim não teremos grandes devastações periódicas.

Penso que em se aceitando esta proposta, haverá que fazer um plantio de espécies nativas ao redor das nascentes com o fito de engrossar a mata ciliar lá em cima, nos Gerais, para que os córregos e rios estejam mais protegidos. Desde que por lá ando tenho o sentimento e, mesmo, a sensação, de que o povo planta que vive bordeando as águas correntes mantêm uma relação tensa com o radiante elemento fogo, coisa que não devemos esquecer.

Ademais, no criar soluções devemos despir-nos de conceitos estanques e definitivos (como: o vaqueiro é o vilão porque põe fogo), sem, contudo, abrir mão da vigilância (como: controlemos e estudemos o real impacto do fogo do vaqueiro, ou, do fogo no roçado). Podemos avaliar que o fogo do vaqueiro ou do roçado a longo prazo vai reduzindo a área de mata ciliar, daí replanta-la.
Já no interior do Vale do Capão há muito baceiro na mata; será que seria bom reduzi-lo? E esta samambaia de canicho, venenosa, que está afogando as árvores? Ela não era tão frequente antes, está aumentando e pega fogo fácil. Será que não é bom reduzir sua presença? Bom, temos muito a pensar e discutir nesta questão da prevenção de incêndios; gostaria apenas que os antigos moradores pudessem também dizer o que pensam.

As mulheres me pediram para fechar esta arenga avisando a todo mundo que o Vale do Capão em si não queimou. Foi doloroso para todos nós ver as serras em chamas e a fumaça poluindo o vale, mas felizmente nenhuma casa foi atingida, e o vale em si, segue verde.

Abraço idoso para todos de Aureo Augusto.