domingo, 25 de outubro de 2015

UMA PLANTA INCRÍVEL: CANDOMBÁ

As rodas de conversa após a ginástica das idosas, nas quartas, antes de começar o ambulatório do posto, são uma fonte inesgotável de conhecimentos instigantes para mim. Quero partilhar com vocês algumas das últimas coisas que aprendi.

Aqui na serra tem uma planta, chamada candombá. Tem um caule rude, grosso e curto, mal chega a meio metro e suas folhas são ásperas, ocupando o cimo do pequeno tronco. Suas flores são enormes, violetas com pistilos amarelos, e por sua forma lembram o hibisco, por aqui conhecido como graxa. Quando o mundo pega fogo lá nos gerais (os planaltos em cima das serras que circundam o Vale do Capão) o candombá fica preservado. As folhas sofrem com o fogo, mas seu caule fica apenas chamuscado. No entanto, se você pega o caule e bate com um pau, para ficar um pouco esfarinhado, pega fogo com a maior facilidade e não apaga mesmo sob chuva grossa. As mulheres comentaram que antigamente o candombá era a lanterna do povo daqui. O povo se arrumava para ir à feira em Palmeiras (sede do município) e saía com o candombá, cuja fumaça negra acabava por pintar o rosto das pessoas e por isso “agente chegava com a cara preta”.

A planta tem uma resina que muito afeita ao fogo e é maravilhosa para acender fogueiras ou o fogão a lenha, ainda comum por essas bandas.
Essa resina inflamável era extraída da planta da seguinte forma: batia no caule com uma pedra até retirar um pó, o qual era posto em uma lata e levado ao fogo, onde ficava “visguento”; este visgo era usado para tapar buracos em latas ou bacias e para lubrificar as correias de couro das rodas d’água usadas para o trato do café nos idos de antigamente.
Alguém já me disse que a resina também tinha uso medicinal, mas as senhoras do grupo não souberam me dizer se sim ou se não dessa coisa.

Logo pode acontecer de os jovens esquecerem dessa planta. Talvez admirem suas flores quando caminharem nos gerais, mas sinto que esse conhecimento pode se perder. Essa resina de uma planta tão especial, que um dia teve papel importante na vida e na economia local pode ser olvidada. Quero registrar para que saibam e não esqueçam e quem sabe, quando recebam títulos universitários pensem em estuda-la e descobrir novos usos para as coisas antigas.


Recebam um abraço antiquado de Aureo Augusto.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

COMO ACONTECEM AS COISAS AQUI NO VALE DO CAPÃO

Estava em casa, mais ou menos 7:30h da noite, imprimindo uns cartazes da Caminhada da Saúde, uma atividade da Unidade de Saúde da Família aqui de Caeté-Açu, quando ouvi uma voz infantil me chamar.
Quando abri a porta deparei com Kairã, neto de Dinha, que estava com um anzol firmemente preso no dedo médio da mão direita. O pai pensava que ele estava na casa da avó, a qual imaginava que estava na casa do pai, mas estava na beira do rio tentando pescar umas traíras, no escuro da noite. Mexi no anzol, ele deu um grito. Telefonei ao pai que em segundos estava em minha casa e no meu carro fomos, o menino chorando e o pai aborrecido com a maçada, para o posto.

Não foi fácil, pois mesmo após anestesiar o dedo, Kairã não parecia estar muito disposto a permitir que eu manipulasse o anzol. Seus gritos me lembravam os Nazgul d’O Senhor dos Anéis. O mais interessante é que entre um guincho e outro, escutava um som belíssimo de vozes que vinha da sala de palestras do posto. Era o Coral do Vale ensaiando para a apresentação no Festival de Jazz. Lembrei-me dos elfos de Rivendel (Valfenda) d’O Senhor dos Anéis.

Como vi que não seria possível sozinho resolver o caso, fui no ensaio e pedi a alguém que viesse me dar uma força. Logo Puza se apresentou. Pedi a ela que, ignorando os gritos, puxasse o anzol em determinada direção enquanto com um bisturi bem fininho eu movia as carnes na direção oposta permitindo a saída do anzol e a estratégia funcionou.
A partir daí apenas os elfos cantaram... peguei as luvas usadas na extração e as enchi como se fossem balões de festa. Kairã abriu um largo sorriso e ficou mais feliz ainda ao ganhar as luvas e a seringa (sem a agulha obviamente) para brincar com seus companheiros de malinagens (expressão daqui, o mesmo que traquinagem).

Muitas pessoas têm dito que o Vale do Capão está diferente, gente demais, civilizado demais etc. Sim, o Vale não é mais o mesmo – e não me parece que isso seja ruim, pois o que não muda, esclerosa – porém há aqui essa magia simples observável no jeito como as coisas acontecem.
Não sei apontar exatamente aonde é que está esta coisa encantadora que me faz sentir-me tocado a todo momento no exercício do meu dia, talvez esteja no fato de que uma criança de 11 anos, ao sofrer um acidente ir direto em minha casa, sabendo onde (e que) seria cuidado, pode ser que seja na disponibilidade verdadeiramente gentil de Puza, ou no som belíssimo do coral por trás de um acontecimento triste, talvez no olhar delicado das senhoras atentas ao que se passava no posto, pois quando ali chego fora de horário é porque alguém sofre... O fato é que há um dom por aqui, que talvez olhos atentos e suficientemente suaves consigam detectar, para além das mazelas que são o presente onde quer que estejamos, um dom, dizia, que faz fazer fácil da vida, poesia.

Andando pela rua, dizendo alô para alguém, atendendo em meio à azáfama do posto, ou do mercado, sorrisos e olhares, condutas quase imperceptíveis, uma mão afagando uma criança, música leve, sempre alguém seja nativa ou imigrante, criando alguma coisa de um nada corriqueiro... pode ser que seja apenas esse jeito peculiar de como as coisas acontecem aqui no Vale do Capão, distrito de Caeté-Açu, Palmeiras-Ba, Brasil...


Recebam um abraço grato de Aureo Augusto

sábado, 12 de setembro de 2015

TESMOFÓRIAS – a Resistência das Mulheres

Temos numerosas dívidas culturais com os gregos antigos e sempre devemos agradecer-lhes pela sua engenhosidade na inauguração de vários instrumentos sociais essenciais para nós. Uma das mais belas criações gregas é a democracia. Vivemos em um mundo onde a vida e a opinião de um ser humano individual é valiosa, tanto quanto a vida e a opinião dos demais, independente de suas posses ou poder político. Foram os gregos quem primeiro admitiram isso e experimentaram um sistema político onde o povão pôde ter sua voz escutada na decisão dos rumos da sociedade. Rendamos preito aos gregos, ou helenos, como eles preferiam ser chamados.

Mas, como era de se esperar, já que se tratava de uma primeira experiência, a democracia grega tinha vários pontos que merecem reparo, embora estes pontos negativos não desmereçam seus esforços.
Um destes pontos é que a mulher não participava do governo, situação compreensível se pensamos que até hoje a mulher não tem os mesmos direitos e só no século passado começaram a ter direito a voto. Na sociedade grega a mulher era bastante segregada. Vivia interdita. Pertencia ao pai e depois ao marido que a guardava ciosamente em uma parte da casa chamada gineceu. No entanto, apesar de toda a opressão elas conseguiam preservar alguns costumes que lembravam a posição que ocupavam na sociedade pré-helênica. As Tesmofórias são um belo exemplo disso.

Tesmofórias eram festas das quais participavam apenas as mulheres. Nenhum homem podia presencia-las em nenhuma hipótese e elas tomaram o cuidado de nunca registrar o que faziam ali para que os homens não metessem o bico. Por isso hoje em dia os estudiosos sabem apenas que elas aconteciam, também que ali ocorriam rituais específicos para as deusas Core, Demeter, mas fora isso são um mistério tão real como é a alma das mulheres. Aliás esta é uma prova de que as mulheres são capazes de segredo, ao contrário do que se costuma divulgar por aí.

O dramaturgo Aristófanes criou uma peça onde um parente de Eurípedes (outro dramaturgo) se disfarça de mulher para participar da celebração feminina e é descoberto. Ele seria morto pelo tribunal de mulheres e só não o foi, porque o próprio Eurípedes foi negociar com as mulheres. A peça mostra que os homens gregos, apesar de todo o seu machismo, reconheciam às mulheres aquele seu direito a encontrar-se e celebrar-se sem a intervenção masculina.

E o tempo passou e à mulher nada mais restou que continuar resistindo, tantas vezes lançando mão de subterfúgios elaborados inconscientemente, outras tantas conscientemente laborando para manter-se em sua integridade e força, outras tantas instrumentalizando-se como veículo do próprio mal que a oprimiu... Hoje, vejo um mundo novo reacendendo o horizonte de uma época, espelho de um remoto passado (que Riane Eisler no excelente “O Cálice e a Espada” chama de gilânico – onde os gêneros se respeitavam como iguais), porém postado com vistas ao futuro.

Vejo esse futuro nas minhas amigas que sabem o que querem e dizem o que manda o coração, e, que conseguem escapar da fácil reação opositora, onde a afirmação de si é mantida pelo ato de denegrir o outro.
Este feminino acolhedor e forte me traz o esperançar de que nos fala Freire, o educador.


Recebam um abraço feminino de Aureo Augusto.

sábado, 29 de agosto de 2015

DOS MAL-ENTENDIDOS, COMPLICAÇÕES E DAS BELEZAS MIÚDAS

Muito me impressiona é o quanto conseguimos na criação de mal-entendidos e complicações e o como nos esforçamos para mantê-los. Sempre escuto pessoas dizendo que tudo seria melhor se fôssemos mais simples. Dizem o quanto complicamos tudo, apenas porque não amamos o suficiente e cobramos, queremos, mandamos, controlamos, dominamos.

Aí, às vezes me dá uma sensação de cansaço quando penso o quanto eu mesmo me complico embora realmente e em sã consciência tento olhar o mundo com o olhar simples e amoroso, sabendo que (isso me ensinou meu filho) a complexidade absurda do Universo é o mais simples possível para que fosse possível o existir.

Inventamos regras e essas nos ajudam na convivência, mas existem regras embutidas nas relações, implícitas, terríveis em sua ascendência sobre as demais instâncias do ser. Ser então torna-se um exercício de desviar-se de si. Sendo assim deixamos de lado o nosso Ser... Pois é. Sei, mas não escapo.

Existem tantas pessoas construídas de beleza (quase todas na realidade), organizadas como angelicais iniciativas de deuses gozosos, mas caem nas malhas desta estranha mediocridade que nos faz guardar distância da alegria, obedecendo a cegueira das leis trançadas de tal forma que parecem esclarecimentos divinos, justas e corretas, quando não passam de instrumentos de dominação, controle, medo e dor. O pior é que descobrimos isso, desvendamos esse abismo, revelamos a conspiração impositiva destas regras, então criamos novas regras em oposição àquelas e as usamos como justas e corretas quando não passam de instrumentos de dominação, controle, medo e dor. E, olhando para estas pessoas e me identificando com elas sinto uma espécie de tristeza que por sorte passa logo...

Passa logo porque em que pese minhas interpretações equivocadas do que podem os outros estar sentindo ou pensando, ou minhas deduções apressadas do que é a vida e do significado das coisas, aprendi a surpreender-me com a beleza das pequenas coisas e o sabor a novidade que pode me trazer o dia-a-dia. Sim, em que pese o fato de eu ser bem bocó, e, apesar dessa minha paradoxal competência para a dor, acabo por cair nas armadilhas que me estende o tempo e a vida, armadilhas de alegria reveladas pela reverberação da brisa nas folhas ou o resvalar da luz sobre as superfícies úmidas, corpos desenhados de lua, campos gerais sob as estrelas, caminhos como galhos retorcidos de árvores nas serras, olhares bondosos, sorrisos e gargalhadas saídas quase que do nada, os desenhos detalhados das folhas do filodendro ou o jogo das nuvens entre as serras e os raios do sol matinal...


Recebam um abraço entre o bem e o mal (risos) de Aureo Augusto.

domingo, 16 de agosto de 2015

COOPERANDO PARA O PARTO SAUDÁVEL

Nas décadas 50 e 60 do século passado alcançamos um alto grau de dicotomia bem/mal nas relações políticas no mundo. A experiência da segunda guerra mundial, onde as democracias (associadas em uma estranha combinação à URSS) venceram as potências do eixo defensoras do fascismo em diversas versões, onde havia claramente aqueles que de ambos os lados se julgavam certos contra os outros, os errados, contaminou a política e a sociedade. Daí os comunistas odiavam os capitalistas que por sua vez demonizavam os comunistas. Esquerda e Direita não podiam se ver...

O tempo e o século passaram e a humanidade se deu conta de que aqueles à direita tinham defeitos e qualidades, e quem estava à esquerda passava pela mesma situação. Hoje os heróis já não são tão heroicos aos olhos do tempo e seus exemplos perderam parte do brilho ideológico. Hoje podemos ser menos maniqueístas.

Infelizmente o velho hábito rapidamente recrudesce quando bulimos em alguns temas polêmicos como é o caso do parto domiciliar, do parto humanizado e do parto hospitalar. Desgraçadamente com demasiada frequência não defendemos um ponto de vista apenas por ele ser algo positivo. Costumamos contaminar nossa argumentação com nossas dores, traumas, usamo-lo como material identitário de modo que se está errado nós mesmos que o defendemos passamos a ser moralmente inadequados ou perdemos valor...

Mas todos nós queremos o bem para a mulher e para a criança. Queremos a alegria do pai e dos demais parentes e vizinhos, pois o nascimento de um bebê é um momento precioso para todos. Por isso convém passarmos a entender que não há (e não deveria haver) conflito entre parto domiciliar e parto hospitalar. Ambos são seguros desde que sejam observadas determinadas condições. Outrossim faço o registro que parto humanizado é uma característica aplicável tanto para o parto domiciliar quanto para o parto hospitalar.

As maternidades públicas (e mesmo uma boa parte das particulares) não estão dando conta da demanda. O noticiário nos informa isso com frequência. Em grande medida isso ocorre porque mulheres que poderiam ter seus filhos em suas residências ou em casas de parto acabam por ocupar um espaço muito necessário às mulheres que apresentam situações de risco.

Uma condição primordial para que o parto possa ser realizado em domicílio é que não haja risco. Se a mulher tem hipertensão, se a criança apresenta certas alterações em seus batimentos cardíacos ou se é prematura, entre outras condições, não há porque parir em casa, devendo procurar um hospital.
Se a mulher estiver parindo em casa e ocorrer, por exemplo, aceleração ou redução acentuada e demorada da frequência dos batimentos cardíacos da criança, nesse caso deve-se manda-la ao hospital mesmo que o parto venha a ser normal. Aqui, a finalidade é aumentar o cuidado. Sendo assim, não devemos ver o parto hospitalar após tentativa de parto em casa como um fracasso, e sim, como a colaboração da tecnologia com o direito ao desejo de ser protagonista de seu próprio processo. Algo, enfim, maravilhoso.

A Holanda é o país da Europa com maior quantidade de parto domiciliar, qualquer pessoa pode comprar o material necessário em uma farmácia, e é o que tem menos infecção puerperal. Os hospitais e os médicos não estão sobrecarregados com uma infinidade de partos normais, guardando seus conhecimentos da patologia para quando as coisas se complicam.


Usando os termos da guerra fria, aqui não se trata de uma luta entre os “porcos capitalistas” contra os “comunistas ateus comedores de criancinhas” e sim de duas possibilidades complementares dialogando pela saúde da criança, da mãe e pela alegria das famílias envolvidas.

recebam um abraço nascituro de Aureo Augusto

terça-feira, 28 de julho de 2015

FECHAR O CAPÃO?

Há mais ou menos 15 anos uma parcela daquelas pessoas que vieram morar aqui no Vale do Capão, tocados pela sua beleza, pela hospitalidade da população e pela possibilidade de uma vida melhor, comentava da necessidade de dar um jeito de parar de vir gente pra cá. Dizia este grupo que logo perderíamos toda a paz, toda a tranquilidade, toda a segurança em pouco tempo.
O tempo não corroborou o medo delas, conquanto os problemas decorrentes da vinda de grande quantidade de turistas se avolumam. Assim como os benefícios.

Não sou tão besta assim que não note que existem sinais de perda de qualidade. A exemplo disso, na semana passada um grupo de vizinhos aqui da área onde moro reuniu-se para ir a um terreno onde foram construídas umas casas bem pequenas e alugadas para pessoas que não demonstram ter grande consideração pelos que moram ao redor, fazendo barulho por literalmente toda a noite. Ocorre que os moradores daqui costumam trabalhar e, assim, têm que dormir à noite para trabalhar no dia seguinte. Um dos vizinhos foi destratado quando se queixou. Então reuniram-se para dar mais peso à reivindicação. Naquele período estava eu viajando (em férias) e não tive o desprazer de testemunhar o despropósito de pessoas que vêm para cá para curtir a natureza, o silêncio, a paz e (seguramente porque o silêncio pode ser muito incômodo) fazem barulho, festa toda a noite e não convivem com a natureza. Esse tipo de coisa tem se repetido... e outras também desagradáveis.

Por outro lado, temos aqui entre os imigrantes e visitantes músicos primorosos, engenheiros, palhaços engraçados, advogados, artistas de várias vertentes, médicos, arquitetos, professores, artesãos, muitos deles contribuindo com os moradores em diversas áreas da vida. A maior parte dos visitantes mostra (cada um a sua maneira e conforme a própria sensibilidade e conhecimento) profundo respeito pelos hábitos locais, pela natureza e contribuem economicamente, filosoficamente, ecologicamente etc. para a vida daqueles que têm a glória anímica de viver no Vale do Capão.

A ideia de criar dificuldades à visitação é tentadora, porque pode ser necessária. Mas uma boa ideia como essa pode ser apenas falta de criatividade, egoísmo, preguiça... Algo assim como a conduta de certos maridos que aprisionam suas esposas com medo de que elas, em contato com outras pessoas, possam deixar de ser sua “reserva de mercado” ou, seu objeto particular de uso. Ora, um casamento é uma construção permanente, onde não cabe aquela coisa definitiva: já casei, ela (ele) é minha (meu) e já está tudo definido. Não, não está definido, faz-se necessário que ele se ocupe com ela, se apoie nela, agrade-a, e que ela se ocupe dele, se apoie nele, agrade-o... Ele não é posse dela e vice-versa. Ambos são livres, mas ao mesmo tempo um é para o outro o maior e o melhor, pelo menos enquanto dure o infinito fugaz (lembrando Vinícius de Morais).

Recentemente vi jovens fazendo monitoramento dos visitantes e gostei disso. Saber a dimensão do suposto ou real problema é um passo importante. Temos várias associações onde estes dados podem e devem ser discutidos, para que possamos elaborar planos de ação que possam ampliar nosso cuidado com esse lugar. Sem deixar de considerar que somos parte do meio ambiente, sem deixar de relacionar-se com nossas humanas necessidades de viver, crescer, sonhar e realizar.

O Vale do Capão é um meu casamento e devo estar atento para cuidar, assim como sou cuidado. Esse é o primeiro passo. Lembro que ele não me pertence, porque quando eu morrer ele não vai desaparecer. Tudo seguirá à minha ausência. Busco cuidar agora, para que depois de mim o que aqui venha encontre melhor o mundo que é esse lugar. Não sou a pessoa mais indicada para dizer o como das ações. Mas sei que devemos conversar sobre isso, sem perder de vista que o bem, a beleza, a paz é anseio e prazer para todos como o é esse Vale abençoado.

Recebam um abraço abençoado de Aureo Augusto.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

SÃO JOÃO 2015 terceira parte

Como vimos nas duas últimas mensagens, o São João aqui no Vale do Capão segue delicioso, mas aconteceu algo bem estranho, quando um rapaz tomou atitudes bem bizarras e a polícia deixou-o ir-se. O dono da pousada estava presente e queria registrar com os policiais o que aconteceu em seu lugar de trabalho, afinal teve prejuízo material. Um dos policiais havia comentado que não sabia onde o poria uma vez chegando a Palmeiras, sede do município aonde está o Vale do Capão. Mesmo assim havíamos pensado que seria bom procurar o prefeito para pedir ajuda quanto a isso. Mas o fato é que o sujeito se foi.

No dia seguinte várias pessoas me telefonaram porque o mesmo rapaz estava desfilando na rua completamente nu, em atitudes acintosas e teve uma pessoa que disse que havia posto uma flor no ânus. Enfim, uma coisa bem estranha. Já aconteceu de uma pessoa ficar nua em um momento de crise psicótica aqui no Capão, mas era uma mulher que até aquele momento nunca havia tomado nenhuma atitude desabonadora e era bastante querida por todos. O povo protegeu-a, cuidou-a até que se recuperou. O caso aqui era outro, pois todos sabiam do que ocorrera na noite anterior e já havia um clima de revolta e de apreensão quanto às atitudes do rapaz.

Após algum tempo do triste espetáculo, o povo decidiu imobiliza-lo e chamar a polícia (novamente). Não estava lá, mas me informaram que foi uma luta dura e o rapaz deu muitos pontapés na porta da igreja até que o amarraram e cobriram com um pano. Quem assistiu ficou chocado. A luta deve ter sido um momento bastante desagradável para quem dela participou e para quem assistiu. O rapaz depois foi conduzido para o posto, mas aí já estava calmo.

Quando a polícia chegou manifestou a preocupação quanto ao lugar onde ficaria o sujeito. Pelo que entendi, a delegacia de Palmeiras está inativa e também o rapaz não era um caso de polícia e sim de saúde (mental, no caso). Por telefone conversei com a secretária de saúde que também estava preocupada, inda mais que a família que havia dito que viria busca-lo no dia seguinte, havia desistido e iria entrar na justiça, para através do ministério público (?) recambia-lo para sua cidade de origem.
Todos ficaram impressionados com isso, pois os laços familiares aqui são muito fortes. Perguntei-me quantas vezes isso teria acontecido e a que ponto a família já está desesperada, cansada, sofrida...

Uma lição para nós é que precisamos nos preparar para estes casos. A pequena cidade de Palmeiras vem sendo muito visitada, pois é bonita e hospitaleira, tem áreas especialmente belas, como o Morro do Pai Inácio, os Gerais, os povoados de Campos de São João, Conceição dos Gatos, Lavrinha (onde o povoamento começou), sem contar o meu amado Vale do Capão.

Apressadamente podemos acusar a prefeitura de descaso. O descaso não é de hoje em Palmeiras, mas nem sempre pecamos por este motivo. Penso que o principal é a ignorância das novas demandas. Antes era relativamente inócuo certas faltas. Mas com o afluxo de turistas e imigrantes, além da melhoria da economia local, vêm desafios que escancaram a nossa incompetência aos olhos da crítica alheia, bem como da autocrítica.


Recebam um abraço pensante de Aureo Augusto.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

SÃO JOÃO parte 2

Cheguei no posto às 17h. Encontrei um jovem turista (depois descobri que tem 25 anos), com os olhos fechados como se dormisse, mas os pés tremiam. Cida, a técnica de enfermagem, já cuidara de seguir minha orientação por telefone (para adiantar as coisas), pôs soro na veia, verificou os dados vitais e a glicemia. E, para completar, cobriu-o para que não sentisse frio. Enquanto examinava-o e verificar que estava clinicamente bem, o funcionário da pousada aonde estava me descreveu que o jovem ali chegou à noite, e sem mais delongas deitou-se e dormiu, junto a uma parede. O dono da pousada, Lili, também nativo aqui do Vale, teve pena dele e não botou pra fora. Ele então armou uma rede na frente de um quarto, dificultando a passagem de um hóspede regular. Lili, ainda assim foi conversar com ele explicando que não podia fazer aquilo. Ele desarmou a rede, mas ficou sentado no refeitório. Depois, Lili foi atrás de lenha para a fogueira de ramo da noite e descuidou do sujeito que arranjou de usar o chuveiro elétrico e ficou um tempo inusitado ali, aproveitando para lavar a roupa. Depois deve ter sentido fome e arrombou a porta da cozinha e alimentou-se, além de ter desordenado tudo. Por fim, quando o encontraram estava desmaiado e o levaram ao posto.

Depois de algum tempo ele respondeu a minhas perguntas com tranquilidade. Perguntei se havia usado drogas, respondeu: “Depende do que você acha que é droga”, com um acento bastante desagradável. Pelo menos me deu o telefone do irmão com o qual falei e se dispôs a vir para cá desde Aracajú para busca-lo. Chamei a polícia mais ou menos às 17:30h. Paradoxalmente, em uma festa junina não havia policial no povoado. A polícia havia prometido chegar às 22h. Sei que o pessoal fica mais alto mais tarde, mas com o movimento de gente aqui, pensei que era uma temeridade não ter polícia. Pedi a ajuda da secretária de saúde que logo se comunicou com polícia, prefeito etc. E o tempo foi passando... Telefonei várias vezes pro prefeito que me disse que havia se comunicado e que uma viatura já estava vindo. A secretária chegou a ficar agastada com a demora e com o descaso. Mas o tempo foi passando...

Então ele despertou e bateu a porta da sala de curativo com muita força, Cida se assustou, foi lá, e viu que estava em pé, havia retirado o soro e se deslocado a outra sala e fechado a porta com vigor. Então cheguei e abri a porta à força, ele saiu muito agressivo, ameaçando-me e exigindo meus documentos. Depois gritou por socorro. Uma coisa bem estranha. Pedi a Cida que chamasse alguns homens fortes, uma vez que minha pujante musculatura (rs) jamais seria suficiente para controlar o rapaz bem mais alto que eu. Quando ele viu a tropa de amigos do posto, recuou e por sorte um dos que se apresentaram, Tony, o reconheceu, porque no primeiro dia em que chegou conversaram algo. Então com muito tato, Tony acalmou-o, mas ele continuou bem arrogante e irônico. Chamei por telefone o prefeito e a secretária de saúde. Ambos chamaram novamente a polícia que disse que já estava a caminho. E o tempo foi passando...

Consegui conversar com o cara e expliquei que o melhor para ele era ir para a cadeia, para se proteger porque havia feito algumas coisas e podia fazer outras – ele dizia que eu é quem dizia aquilo, duvidando, até que chegou Lili e foi descrevendo tudo e ele se lembrou e pediu desculpas com um ar de que havia cumprido sua obrigação ao fazer isso. Pelo menos aceitou ir para a delegacia quando chegassem os policiais. E o tempo foi passando...
Perto da meia-noite os policiais chegaram. Interrogaram, falaram, foram tratados por ele com algum desdém, se irritaram um pouco, mas não muito. Então o rapaz foi calçar-se para ir. Saiu. A viatura parada na porta do posto... E o tempo foi passando... Falei então: “Olhem ele já está aqui”. Um dos policiais retrucou: “Agora é com a gente”. Calei. E o tempo foi passando...
Entrei por alguns minutos e quando saí descobri que o rapaz calmamente se afastou e foi embora. O CARA FOI EMBORA TRANQUILAMENTE!!!!!!

Pensei que se era para deixa-lo livre, poderia tê-lo feito eu mesmo, sem precisar ficar seis horas e meia ali (pois eu não estava de plantão e sim de sobreaviso), já que não queria deixar Cida só com uma pessoa como ele. Então me perguntei que outra porta iria arrombar, que outras pessoas iria destratar, e se alguém revidasse?
Mas a coisa não acabou aí. Vejam a próxima postagem.


Recebam um abraço estranhado de Aureo Augusto

sábado, 27 de junho de 2015

SÃO JOÃO 2015 PARTE 1

Festa de largo aqui no Vale do Capão é sempre uma delícia para todos os gostos. Aqueles que não comem carne podem se deliciar com uma grande variedade de pratos, inclusive atendendo aos mais radicais, que, como os veganos, se recusam a comer produtos lácteos e mel, e aos que comem carnes, não lhes faltam petiscos. Além disso, e falando especificamente do São João, que é uma festa regada a variegados licores, tem pouca confusão e brigas – não é que não tenha, que fique isso claro, mas menos do que o esperado.

Este São João de 2015 está tão bonito que dá gosto. Pessoas lindas de todas as tribos passeando na praça, rindo e se divertindo em paz, apesar de alguns idiotas bêbados (que sempre há) ou maconheiros fumando no meio das demais pessoas que não têm adicção a este costume.
Como todos sabem, o grande dia é a véspera, quando temos a fogueira, canjica, amendoim cozido e coisas assim. Por isso ontem a praça estava lotada, houve muito forró e comilança. A prefeitura me colocou de sobreaviso para qualquer eventualidade e assim fui chamado ao posto para atender um rapaz que chegou desmaiado. Essa foi uma nota bem desagradável da bela festa. Mas sobre isso escrevo depois...

O grande momento, para mim, é a fogueira de ramo. Este ano foi preparada por Lili e alguns amigos. Pegam uma árvores ou um galho reto e colocam no meio da fogueira enquanto penduram nos galhos diversos presentes – sacos de avoador, dinheiro, laranjas e outras frutas, garrafas de bebidas etc. – e fica uma tropa de gente esperando o ramo cair. Não perco!
Na hora exata é uma confusão danada e não dá pra ficar sendo delicado com o vizinho, pois todos querem pegar alguma coisa. Eu inclusive.

Pouco antes do galho ceder ao fogo e cair, uma menina me pediu pra pegar algo pra ela. Já estava de olho em um saco de avoador, pois Sunna, minha filha ali presente, gosta muito disso. Quando o galho se inclinou, eu já havia me postado bem embaixo do meu alvo, um lugar quase perigoso, pois o tronco poderia bater em minha cabeça. Dei um pulo, o mais alto que pude e agarrei o saco, mas este estava bem amarrado de modo que se rompeu, espalhando os pequenos e frágeis globos pelo chão. Tive que focar outra coisa e vi uma garrafa que me pareceu ser de molho de soja (só no Capão mesmo!), outra pessoa percebeu o mesmo e corremos juntos, nos chocamos no ar e o cara (que não sei quem é) saiu pela tangente, agarrei a garrafa e ao chegar ao chão alguém se chocou comigo (ou eu sozinho me desarrumei o equilíbrio) e também me espatifei, mas não larguei o prêmio. Ri feliz e corri para festejar. Infelizmente a garrafa era de catuaba – uma bebida alcoólica – que logo dei a quem gosta.

Foi aí que a menina me encontrou e pediu seu presente. Expliquei que não tinha conseguido e ela me disse: “Mas Aureo, você é o médico da gente, podia ter ido atrás do que quisesse, que ninguém ia bater em você”. Observe que pare ela eu sou alguém especial que deveria receber consideração especial, mas me trata por “você” e me chama pelo meu nome sem o comum apodo: Doutor. Então lhe contei que tinha sido derrubado e caíra no chão. Ela me olhou com uma cara de incredulidade, como se fosse algo bem impossível. Não pude deixar de rir.
Aí voltei para o posto, aonde Raí (Raimundo Cirilo, dentista do posto) havia ficado no meu lugar para que eu pudesse me divertir naqueles minutos. O que estava acontecendo na unidade de saúde é assunto para o próximo post. Aguardem.


Recebam um abraço junino de Aureo Augusto.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O ÁPICE E A PARTE

Acredito que por imperativo biológico, nós os seres humanos somos uma gente dada a querer intervir no ambiente, modifica-lo, faze-lo algo nosso. Como se não fossemos seres biológicos. Da mesma forma, os pássaros fazem ninhos e neles se acomodam, os castores criam barragens inundando áreas mais ou menos extensas, as formigas criam estruturas subterrâneas às vezes de grande tamanho e complexidade, enquanto as térmites constroem suas casas impressionantes, onde arranjam de tal forma o ordenamento dos corredores de uso e de ventilação que a temperatura e a umidade dentro do ninho é, para elas, agradável, a despeito das condições climáticas adjacentes. Os seres vivos procuram condições mais satisfatórias e, inclusive, atuam de modo a tornar o mundo mais adaptado a si, da mesma forma como, as espécies se adaptam às condições do mundo. Ou seja, além de se adaptar às condições ambientais, os seres vivos, e dentre eles os humanos, mudam o mundo para que este atenda aos próprios interesses orgânicos.

Bato novamente na mesma tecla: Como seres biológicos os humanos compartem esta característica – mudar o mundo. Vai daí que (ocorre-me) que toda a ação humana é biológica, ou, dito de outra maneira, natural. Naturalmente construímos as cidades, os automóveis, os livros, e tantas outras coisas que fazem parte de nossas vidas, quase que como extensões de nossos sentidos e competências.

Às vezes vou mais além e me ocorre que tudo isso que fazemos faz parte de um imperativo biológico, natural. Somos, provavelmente, os únicos seres naturais dotados de autoconsciência. Ou seja, além de estarmos cientes de que estamos vivendo aqui no mundo, de que participamos de relações com o entorno, somos capacitados a perceber-nos em nossas relações conosco mesmo. Possivelmente, mas não certamente, outros seres que partilham conosco a vida nesta Terra, não são capazes disso, ou, pelo menos, não são tão capazes disso. Mas se temos esta capacidade, foi o processo evolutivo do planeta que levou a isso.

Ocorre-me que a manifestação da individualidade, apanágio da espécie humana, é uma necessidade da biologia do nosso planeta. Mas, para que? Não tenho a mais mínima ideia.

Seja como for, nos sentimos bem superiores aos demais seres por conta dessa nossa competência, quando frequentemente esta consciência da individualidade facilmente degenera em um individualismo que pode revelar-se perigoso para a espécie e para o planeta. Esta crença em uma superioridade é frágil se consideramos que a posição que ocupamos entre as demais espécies foi o resultado natural do processo evolutivo, não apenas da humanidade, mas, da humanidade enquanto parte de um contexto planetário. Podemos imaginar que se a humanidade falhar na manifestação de uma individualidade que acabe por adicionar qualidade à evolução do planeta, naturalmente, cedo ou tarde, encontrará seu fim, podendo, em tempo hábil, acontecer o desenvolvimento de outra espécie para ser veículo dessa (suponho) necessidade evolutiva do planeta.

É interessante constatar (ou apenas elucubrar) que ao mesmo tempo em que somos algo assim como um ápice em relação às demais espécies, somos nada mais que o fruto natural da evolução com o fim de manifestar algo da evolução, da mesma forma como as bactérias manifestam a competência de ser a base de todas as demais vidas, ou as jaguatiricas têm lá suas competências e as manifestam competentemente. Uma a mais!

Uma vez pensado isso, vou lá fora dar uma olhada nas serras que estão embebidas de nuvens.


Recebam um abraço consciente de Aureo Augusto.